A Jovem Rainha Vitória muda o retrato da soberana: cinema troca o mito pela pessoa
6 setembro 2025

Por Elias

Um retrato que foge do clichê

Filmes de época costumam polir mitos. Aqui, acontece o oposto: A Jovem Rainha Vitória (2009) desmonta a figura da soberana carrancuda e a recoloca como uma mulher de 18 a 24 anos, cheia de energia, desejo e dúvidas. Dirigido por Jean-Marc Vallée e estrelado por Emily Blunt, o longa abre espaço para a pessoa por trás da coroa — uma escolha que muda a conversa sobre quem foi Vitória e por que ela marcou um século.

Historicamente, a Vitória que guardamos na memória coletiva é a das fotos tardias: olhar pesado, queixo duplo, véu preto de luto e uma postura que virou sinônimo de rigidez moral. Os retratos mais jovens existem, claro, mas quase não pautaram a cultura pop. O filme vira a lente para esses anos iniciais e, ao escalar Blunt — rosto fino, gestos elegantes —, contrasta com as feições mais rudes registradas nas imagens do século XIX. O único traço em comum que salta aos olhos, registrado por cronistas da época, é a pele muito clara e cuidada, que a produção mantém como fio de continuidade.

Essa moldura estética sustenta uma escolha narrativa: humanizar antes de canonizar. O roteiro encosta na impulsividade da jovem rainha, no jogo político que a cercou e no romance com Albert, tratado como parceria afetiva e também de trabalho. As cenas de bastidor do poder — cartas, conselhos, a dependência inicial do primeiro-ministro Lord Melbourne — mostram uma corte em que a autoridade pessoal da monarca convive com limites constitucionais que se tornavam cada vez mais nítidos.

Esse recorte não é gratuito. Ao longo dos 63 anos, sete meses e dois dias de reinado, a monarquia britânica avançou para um formato mais simbólico, enquanto reformas eleitorais ampliavam o poder do Parlamento e encurtavam a margem de manobra do soberano. Em meados do século XIX, já se dizia que ao monarca cabiam três direitos: ser consultado, encorajar e alertar. O filme dá um rosto a essa transição: a coroa, mais do que mandar, precisava convencer.

Na tela, o romance com Albert ganha espessura política. Ele opina em discursos, questiona intrigas, tenta profissionalizar a rotina do palácio. A ideia de “monarquia de família” — um casal que trabalha junto, cria filhos e posa para fotos íntimas — vira linguagem pública. Essa imagem conversou com a classe média vitoriana e ajudou a distanciar a corte dos escândalos da Casa de Hanover. O longa mostra esse começo, quando o protocolo ainda era permeado por nervosismo juvenil, inseguranças e uma negociação constante entre dever e desejo.

O contraste com a iconografia tardia é proposital. Um quadro de 1842 já mostrava uma jovem de traços desarmônicos, e a fotografia de 1887 cristalizou a matriarca envelhecida. O filme escolhe outra moldura, com luz quente, close na pele, figurinos que respiram juventude e espaços filmados como se ainda estivessem sendo “estreando” uma corte moderna. Visualmente, isso captura a mudança de fase: de um trono herdado para um papel moldado dia a dia.

A produção investe pesado no design. Os figurinos de Sandy Powell renderam o Oscar e consolidaram um tipo de realismo sensorial que carrega a história pela textura dos tecidos, pela cor e pelo caimento. Perucas, maquiagem e joias não são só decoração: ajudam a contar a passagem da menina isolada na Kensington System para uma soberana que descobre como ocupar salas maiores do que ela. O acabamento técnico, afinado e coerente, sustenta a ideia de que estética, aqui, também é narrativa.

Entre a história e o cinema: o que fica

Convém lembrar: não é documentário. O filme condensa eventos, simplifica antagonismos e romantiza passagens para manter ritmo e foco. Victoria viveu crises reais com ministros, enfrentou atentados e navegou por uma maré de reformas que mudaram a relação entre o Palácio e Westminster. Na tela, esse mar virou correnteza: tudo chega mais perto, mais rápido, mais palpável.

O que ganha o público é a dimensão íntima. Victoria escrevia, desenhava, observava detalhes. Seus cadernos e esboços, muitos leiloados nas últimas décadas, mostram uma mulher atenta a roupas, paisagens, animais, cenas domésticas. A arte funcionou como refúgio em viagens e, mais tarde, no luto pela morte de Albert. O filme acerta ao sugerir que, por trás da pompa, havia alguém que se agarrava a hábitos miúdos para manter a cabeça erguida.

Ainda assim, há pontos de debate. O elenco, mais bonito do que a realidade registrou, é uma licença que empurra a narrativa para a fantasia romântica. A câmera favorece gestos contidos, sorrisos sutis, lágrimas calculadas — escolhas que funcionam na dramaturgia, mas suavizam arestas do poder real, feito também de pressões, intromissões e humilhações públicas. Historiadores lembram, por exemplo, que a jovem rainha foi testada sem trégua por ministros e parentes.

Mesmo com esses atalhos, o filme ajuda a recolocar peças no tabuleiro. Ao exibir uma Vitória apaixonada e vulnerável, explica por que sua monarquia virou espelho de moral e família. Havia cálculo político nisso, claro, mas também uma necessidade de credibilidade em um sistema que passava a depender menos de ordens e mais de consentimento. A popularidade da “avó da Europa” — o apelido veio da rede de casamentos que espalhou seus 42 netos pelo continente — não brotou do nada: foi construída na rotina.

Produção e bastidores também contam história. A ideia do projeto ganhou fôlego com o interesse de Sarah Ferguson, duquesa de York, que viu ali uma chance de atualizar a lenda e, ao mesmo tempo, garantir autenticidade de corte nos detalhes. Sob a direção de Vallée, a câmera prefere proximidade a solenidade. Não é palco, é sala de estar. Não é proclamação, é conversa. Essa troca de foco, da pompa para o gesto, é o coração do filme.

Vale separar o que o longa acerta do que ele simplifica:

  • Acerta ao tratar o casal Vitória-Albert como parceria de ideias e rotina, não só como romance.
  • Acerta ao mostrar os limites práticos do poder real num Parlamento em expansão.
  • Acerta ao traduzir em figurino e cenário a passagem da adolescência para a função pública.
  • Simplifica datas, acelera conflitos e suaviza rivais para manter fluidez dramática.
  • Idealiza fisicamente personagens cuja iconografia histórica é mais dura e menos glamourosa.

Nesse processo, o filme também atualiza o modo como olhamos para líderes do passado. Em vez de repetir o retrato da viúva austera, ele pergunta: o que essa mulher queria aos 20 e poucos anos? De quem precisava? A quais riscos se expôs? Essa virada de pergunta, do papel para a pessoa, conecta o século XIX a um público que pede personagens com curvas, não estátuas.

Há também o pano de fundo institucional, que o longa sugere sem virar aula: as reformas eleitorais que ampliaram o sufrágio masculino, a profissionalização do governo, o recuo da influência da nobreza no dia a dia legislativo. Ao final da vida de Vitória, a monarquia já operava mais como símbolo nacional do que como poder de veto. O filme, ao investir em cartas, conselhos e advertências privadas, ilustra essa “constituição informal” que Bagehot descreveu.

Quando a rainha morreu, em 1901, encerrou-se o ciclo da Casa de Hanover no trono britânico. Edward VII, filho de Vitória e Albert, levou ao poder a Casa de Saxe-Coburgo-Gota, mudando o sobrenome dinástico e reforçando a dimensão europeia da árvore genealógica montada pelo casal. O cinema, ao recuperar a juventude da monarca, ajuda a ver como tudo isso começou: não com uma lenda pronta, mas com decisões miúdas, tropeços e pactos domésticos.

Emily Blunt ancora essa leitura com uma atuação que transita entre fragilidade e firmeza. O olhar dela, sempre prestes a ceder ou a endurecer, vira bússola emocional da história. A direção de Vallée recusa teatralidade e busca o drama em portas semiabertas, bilhetes e nãos sussurrados. O resultado conversa com quem gosta de ver a História pelas frestas, sem perder o fio do romance.

Talvez esse seja o ponto central: quando a imagem oficial pesa demais, precisamos de um desvio para lembrar que todo mito já foi gente. A Jovem Rainha Vitória oferece esse desvio com cuidado, brilho técnico e uma pergunta que continua a ecoar — que tipo de líder você enxerga quando desliga o holofote da pompa?