A Graça Vargas, médica endocrinologista com mais de duas décadas de carreira no Norte de Portugal, foi detida na quarta-feira, 19 de novembro de 2025, acusada de liderar um esquema que fraudou o sistema de saúde nacional por mais de uma década. A Polícia Judiciária, numa operação chamada "Obélix", revelou que ela prescreveu mais de 65 mil embalagens de medicamentos como Ozempic, sem que os pacientes tivessem diabetes — apenas para emagrecimento. O prejuízo estimado? Três milhões de euros em comparticipações estatais pagas indevidamente. A verdade é que, enquanto o mundo discute o uso de semaglutida para perda de peso, em Portugal alguém estava lucrando com a fraude — e o Estado estava a pagar a conta.
Um esquema que durou 11 anos
A investigação começou em 2020, após uma denúncia anónima, mas os atos fraudulentos remontam a 2014. A médica, que exercia em clínicas do distrito do Porto, usava o software da MedicineOne, S.A. para introduzir dados falsos nos registos de pacientes: alterava diagnósticos, inventava histórias clínicas e até recorria a familiares diabéticos para emitir receitas em seu nome. Um caso emblemático, citado pelo Ministério Público, envolve um utente chamado Luís — nome fictício — que recebia prescrições em nome do cunhado, que realmente tinha diabetes. "Era um sistema de passar a bola", disse um investigador à PJ, "como se a doença fosse um produto que se emprestava". Entre 2014 e 2025, Graça Vargas tornou-se a maior prescritora nacional de medicamentos antidiabéticos — não por necessidade médica, mas por demanda estética. A Autoridade Tributária, que colaborou na investigação, detectou padrões anormais: mais de 1.914 pacientes, quase todos adultos com excesso de peso, sem qualquer outro diagnóstico de risco metabólico, recebendo doses mensais de Ozempic, Saxenda e Victoza — todos medicamentos cujo custo é comparticipado em 80% pelo Estado.Quem mais está envolvido?
Além da médica, foram constituídos arguidos: outra profissional de saúde, um advogado que supostamente organizava a estrutura jurídica da operação, e uma empresa clínica que atuava como fachada. As buscas realizadas na quarta-feira abrangeram escritórios de contabilidade em Santa Maria da Feira e Lousada, onde os contadores teriam manipulado faturas e comprovativos para justificar as receitas. A PJ apontou que a clínica não tinha infraestrutura adequada para o volume de consultas — mas tinha lucros desproporcionais. O esquema funcionava como uma fábrica: pacientes pagavam entre 80 e 150 euros por consulta, recebiam a receita e o medicamento — e o Estado pagava o resto. "É como se alguém tivesse aberto uma loja de emagrecimento e o governo estivesse a financiar o produto", comentou Rui Paulo Zilhão, coordenador da investigação. A própria plataforma MedicineOne, segundo a PJ, tinha alertas automáticos que ignoraram — ou foram desativados — por funcionários da clínica.As consequências para a médica
Graça Vargas foi apresentada ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto no mesmo dia da detenção. O juiz impôs uma caução de 500 mil euros, a ser paga em 30 dias, e proibiu-a de contactar testemunhas, sair do país, frequentar a clínica onde trabalhava ou exercer qualquer atividade médica. Ela nega as acusações, mas os registros digitais são contundentes: mais de 65 mil prescrições em 11 anos, com um padrão de repetição que nenhum médico real teria — nem mesmo em hospital de grande porte. O caso está agora ligado a um inquérito paralelo do DIAP de Santa Maria da Feira, que investiga fraude fiscal. Os suspeitos teriam movimentado milhões em contas bancárias através de empresas de fachada, e a Autoridade Tributária já identificou transações suspeitas entre 2016 e 2023.
Por que isso importa para todos nós?
Este não é só um caso de corrupção médica. É um ataque direto ao sistema de saúde público. Cada euro roubado é um euro que não foi para um doente real com diabetes tipo 2, que precisa desses medicamentos para sobreviver. Em 2024, o Ministério da Saúde já havia identificado o "score de risco" elevado de Graça Vargas — mas a resposta foi lenta. A própria Direção-Geral da Saúde tinha alertas, mas não houve ação preventiva. Agora, com o esquema desmantelado, o Estado terá de reavaliar seus sistemas de monitoramento de prescrição. O uso de Ozempic e similares para emagrecimento é legítimo — mas apenas quando prescrito por critérios médicos rigorosos. A fraude aqui não foi na moda, mas na exploração da lei. E isso pode abrir portas para outras fraudes, se não forem corrigidas as falhas no controle.O que vem a seguir?
A instrução judicial agora começa. A promotoria pedirá a prisão preventiva se houver risco de fuga ou destruição de provas. As empresas envolvidas serão investigadas por fraude informática e burla qualificada — crimes que podem levar a penas de até 12 anos de prisão. O Ministério da Saúde anunciou que vai reformular os sistemas de detecção automática de prescrições suspeitas, com novos algoritmos baseados em padrões de consumo e frequência. Mas a pergunta que fica é: quantos outros médicos estão fazendo o mesmo? E quantos pacientes, seduzidos por promessas de emagrecimento rápido, se tornaram acidentalmente cúmplices?
Os impactos no mercado e na saúde pública
A operação "Obélix" já gerou reações no setor farmacêutico. A Novo Nordisk, dona da marca Ozempic, anunciou que vai reforçar o controle de distribuição em Portugal, exigindo comprovante de diagnóstico para cada nova receita. A Associação Portuguesa de Endocrinologia também emitiu um comunicado, alertando para o risco de normalização do uso de medicamentos para fins estéticos — e pedindo mais fiscalização. Para os cidadãos, isso significa que, nos próximos meses, pode haver mais exigências para obter esses medicamentos. Talvez até a necessidade de exames laboratoriais obrigatórios antes da prescrição. O que era um tratamento para diabéticos pode se tornar um medicamento de acesso restrito — e isso, por mais inconveniente que pareça, é o preço de um sistema que foi abusado.Frequently Asked Questions
Como o Estado descobriu que havia fraude nas prescrições?
O sistema de monitoramento da Direção-Geral da Saúde identificou um "score de risco" anormal na médica Graça Vargas, que prescrevia 30 vezes mais medicamentos do que a média nacional. A Autoridade Tributária cruzou esses dados com declarações de impostos e movimentações financeiras da clínica, descobrindo que os pacientes não tinham diagnósticos válidos. Foram analisadas mais de 200 mil prescrições entre 2014 e 2025.
Por que o Ozempic foi escolhido para esse esquema?
O Ozempic é um dos medicamentos mais eficazes para perda de peso, com resultados visíveis em semanas. Além disso, é comparticipado em 80% pelo Estado, o que torna o lucro da fraude extremamente atraente. Enquanto um paciente pagaria cerca de 150 euros por mês no mercado privado, com a comparticipação, o custo para o Estado era de 120 euros por embalagem — e a clínica lucrava com o volume.
Quais são as penas possíveis para os envolvidos?
Se condenados, os crimes de burla qualificada e falsidade informática podem resultar em penas de 3 a 12 anos de prisão. O advogado e a empresa podem ser multados em até 100 mil euros cada. A médica também pode perder o registro profissional e ser banida do sistema de saúde público para sempre. A caução de 500 mil euros é apenas uma medida cautelar — o valor real da reparação pode ser muito maior.
O que isso muda para pacientes que realmente precisam desses medicamentos?
A partir de agora, será obrigatório apresentar exames laboratoriais comprovando diabetes tipo 2 e um laudo médico atualizado. A prescrição será vinculada ao número de identificação fiscal do paciente e rastreada em tempo real. Isso pode atrasar o acesso, mas evita que o medicamento seja roubado de quem realmente precisa. O sistema está sendo reprogramado para bloquear automaticamente prescrições com padrões suspeitos.
O caso está relacionado a outros casos semelhantes em Portugal?
Sim. Em 2023, um caso similar foi descoberto em Coimbra, mas com menor escala — apenas 12 mil embalagens e 400 pacientes. O de Graça Vargas é o maior já registrado em Portugal. A PJ está analisando outros 17 médicos com scores de risco elevados, mas até agora, nenhum chegou ao nível desta operação. A investigação continua aberta.
O que os cidadãos podem fazer para evitar esse tipo de fraude?
Não aceite prescrições de medicamentos sem diagnóstico formal. Se alguém lhe oferecer Ozempic "para emagrecer" sem exames, denuncie ao SNS ou à Autoridade Nacional de Medicamentos. Também é importante verificar se a clínica tem licença válida e se o médico está inscrito na Ordem dos Médicos. A denúncia anónima que desencadeou esta operação veio justamente de um paciente que desconfiou.